Palestrante em Foco: Sandra Guerra fala sobre seu livro "A Caixa-preta da Governança"
Os conselhos de administração são conhecidos pelos acadêmicos como caixas-pretas devido à natureza de sua atuação. Mas isso, no entendimento da especialista em governança corporativa, Sandra Guerra, não pode ser compreendido como um colegiado fechado, incapaz de dialogar com as partes interessadas.
Palestrante do 65º Encontro de Conselheiros Certificados IBGC, em São Paulo, realizado em junho, Sandra Guerra concedeu entrevista ao IBGC em Foco e comentou sobre o seu novo projeto de pesquisa, as avaliações de conselho e como foi o processo de pesquisa para o seu livro, lançado em maio, “A Caixa-Preta da Governança”.
Sandra foi uma das fundadoras do IBGC e também presidiu o seu conselho de administração por duas vezes. Durante três anos, ela pesquisou o cenário do funcionamento dos conselhos em toda sua complexidade. Nesse período, ela realizou uma pesquisa junto a 102 conselheiros brasileiros. Também realizou entrevistas individuais (27 ao todo com profissionais de nove nacionalidades diferentes, em mais de oito cidades do mundo). O resultado foi a publicação do livro e um artigo acadêmico publicado na revista do International Finance Corporation (IFC), o braço para a inciativa privada do Banco Mundial.
Leia os principais trechos da entrevista a seguir:
IBGC em Foco: Como foi o processo para conseguir que 102 conselheiros respondessem aos questionários?
Sandra Guerra: [Risos]Isso foi realmente o resultado de muita determinação. Essa pesquisa aconteceu entre maio de 2015 e janeiro de 2016. Pelo período, a amostra poderia ser até maior. Eu já havia vivido essa experiência no meu mestrado na FEA-USP, quando pesquisei sobre o papel dos conselhos de administração de companhias listadas no Brasil. Eu mesma sou objeto desse tipo de pesquisa. Sei que é complicado, existe o problema de falta de tempo. Para garantir a resposta, eu mandei lembretes individuais para aqueles que deixaram o e-mail de cadastro, lembrando para terminar de responder. Eu também usei meus contatos e, durante o período da pesquisa, acabei incluindo novas pessoas. Foi um trabalho de formiguinha. Era um trabalho próximo de cada um dos entrevistados para conseguir as respostas. Inclusive, eu faço um alerta no livro e no artigo acadêmico que eu escrevi para o IFC: como eu fui atrás de respondentes do meu relacionamento, que estão envolvidos de uma forma ou de outra com governança, pode haver um viés de pessoas mais informadas sobre governança na minha amostra. Mas eu tenho a impressão que se eu fizesse a pesquisa agora o número de respostas já seria maior, por conta da repercussão do livro. [Risos] Por isso mesmo, eu já comecei o próximo projeto de pesquisa.
IBGC em Foco: E sobre o que é esse novo projeto? Segue a mesma linha de pesquisa?
Sandra Guerra: Sim. É sobre a questão comportamental dos conselhos. Mas, dessa vez, eu quero abordar no âmbito internacional. Com um foco mais preciso que essa pesquisa anterior. Ainda estamos determinando quais aspectos comportamentais dos conselhos, de todos que eu pesquisei para o livro nós vamos abordar. Num trabalho acadêmico, quanto mais preciso melhor.
IBGC em Foco: E deve sair um novo livro?
Sandra Guerra: Dessa vez, será uma pesquisa acadêmica, que vai sair como um artigo acadêmico. Um novo livro, não está em mente ainda.
IBGC em Foco: Existe algum conselho que consegue driblar os vieses cognitivos?
Sandra Guerra: É difícil dizer que algum conselho consiga. É possível dizer que alguns conselhos navegam melhor nessas questões. Ou seja, identificam aspectos comportamentais com influência relevante na sua atuação e lidam melhor com isso. Mas é importante ressaltar que você tem duas dimensões aí. Tem o indivíduo conselheiro, que admite que os aspectos comportamentais são relevantes e quer aprender mais sobre isso. E, depois de ter conhecimento, quer atuar cotidianamente para mudar isso.
IBGC em Foco: O outro nível é o do conselho como um grupo, certo?
Sandra Guerra: Sim. O outro nível é o do conselho, como um colegiado consciente que a questão dos vieses cognitivos interfere no seu funcionamento. Quando você tem mais indivíduos no conselho com essa consciência, você tende a ter essa dimensão melhor trabalhada no próprio conselho. E também depende muito do líder. Se o líder do conselho não está aberto a essa visão, mais difícil ela será trabalhada. Tomei conhecimento de alguns conselheiros terem comprado várias edições do meu livro para dar para os seus pares no board, por compreenderem que mais pessoas desse conselho precisam navegar nesse assunto para esse aspecto [comportamental] seja também considerado nas reuniões.
IBGC em Foco: Uma das maneiras de contornar isso são as avaliações dos conselheiros?
Sandra Guerra: Alguns conselhos fazem as avaliações de conselheiros, mas ainda é uma coisa incipiente e muito longe do - digamos - "estado da arte". O mercado ainda tem muito o que amadurecer, no sentido de caminhar para avaliações de conselho mais efetivas e que tenham um maior impacto na sua própria atuação. Por exemplo, os conselhos precisam avaliar se a quantidade de comitês é razoável; se os materiais chegam aos conselhos em tempo adequado; se a duração da reunião é suficiente, etc. Esses elementos têm que ser avaliados periodicamente. Mas eles não são suficientes para se fazer grandes transformações nos conselhos. É preciso aprofundar a discussão para incorporar as questões comportamentais. Você vai buscar avaliar o processo de decisão no conselho se a condição estabelecida na reunião favorece o contraditório e se o processo de debate contempla as várias visões existentes, independentemente da visão dos especialistas ou daqueles que detêm mais poder de decisão? Você vai avaliar se existe uma dinâmica que permita extrair a informação que apenas um indivíduo ou um grupo possui, mas isso é essencial para o debate? É aí que entram as questões comportamentais, que também precisam ser avaliadas.
IBGC em Foco: De onde veio a inspiração para chamar o seu livro sobre conselhos de administração como a “caixa-preta da governança”?
Sandra Guerra: Os conselhos são chamados de caixa-preta por acadêmicos. A primeira vez que eu vi essa expressão foi durante a minha dissertação. Ela me impactou muito. Eu tive uma sensação de “eureca”, “bingo”. No texto no qual eu li essa expressão dizia que mesmo quando um pesquisador consegue acesso a uma reunião de conselho, a dinâmica muda. A mera presença de alguém externo já muda a dinâmica. Por isso, existe uma dificuldade em observar cientificamente um conselho.
IBGC em Foco: A crítica ao sigilo dentro dos conselhos é comum, como você até aponta no livro. Mas também não seria possível rumar para um modelo completamente diferente, de transparência total, transmissão ao vivo das reuniões etc. É possível encontrar um caminho que o conselho deixe de ser essa caixa-preta?
Sandra Guerra: A natureza do processo de decisão de um conselho de administração exige sigilo e confidencialidade. Não existe a possibilidade de você transformar isso num processo completamente visível e transparente para todos os stakeholders. Mas há uma gradação de níveis de transparência. O conteúdo do debate do conselho é o que precisa manter confidencial. Isso é do interesse da empresa, para se proteger dos concorrentes, e das suas partes interessadas, até por ser um processo de longo prazo com muitas idas e vindas antes de chegar a uma decisão. Porém, em relação a forma como um conselho lida com os diversos conteúdos e com seus diversos papéis (seja o processo de decisão estratégia, seja o processo de monitoramento dos executivos e do desempenho da empresa) pode aumentar o nível de transparência. Ao longo do tempo, os conselhos têm mostrado de maneira muito limitada para suas partes interessadas como eles operam, como eles funcionam e quais os mecanismos que eles têm para mostrar que a sua atuação é feita com diligência, responsabilidade etc. Muitos conselhos podem entender que já fazem isso. Mas, possivelmente, muitos se equivocam ao não compreender a expectativa das partes interessadas. Essa expectativa é crescente. Ressalto que, em mercados de capitais mais maduros, tem sido comum que o conselho tenha também um canal com o investidor. Desenhado para não ter efeitos colaterais, que impeça que sejam compartilhadas informações relevantes, mas separado da área de Relação com os Investidores da empresa. Nesses canais, eles podem deixar claro a sua forma de funcionamento. Em resumo, a caixa-preta sempre permanecerá uma caixa-preta pela natureza da sua tarefa. Mas a caixa-preta pode abrir janelas que deem para os externos o conforto de que a atuação dessa caixa-preta é feita para o melhor benefício das partes interessadas.