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Artigo: Complementares, mas distintas

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Em empresas familiares, é preciso pensar em dois tipos de governança: a corporativa e a da família

Empresas familiares têm papel decisivo no desenvolvimento econômico mundial. Entre 70% e 90% do PIB global vem dessas organizações, de acordo com o Family Firm Institute. Na América Latina e no Sudeste Asiático, a parcela de negócios controlados por famílias também varia entre 70% e 90%, segundo dados da consultoria McKinsey. Esse não é um fenômeno recente nem exclusivo de países em desenvolvimento. Na Alemanha, França e Itália, famílias detêm o controle de 75% das empresas, estima a European Family Businesses, federação europeia que representa associações nacionais de empresas familiares do Velho Continente; no Reino Unido, a parcela é de 65%. Algumas das maiores companhias dos Estados – e do globo – também são ligadas a famílias, como Berkshire Hathaway, Ford e Walmart.

A dimensão e a representatividade desses empreendimentos, de microempresas a conglomerados transnacionais, tornam seus sucessos e insucessos fonte de preocupação não só para proprietários, herdeiros, sócios, administradores e colaboradores. Governos e a sociedade em geral são altamente afetados por sua atuação. Nos países europeus, por exemplo, as empresas familiares chegam a responder por 40% a 50% da força de trabalho no setor privado, aponta a European Family Businesses.

Naturalmente, esse segmento está no radar dos estudos e discussões de governança corporativa, que têm se atentado cada vez mais aos impactos das organizações sobre as partes interessadas relevantes (stakeholders) que vão além de seus sócios, administradores e públicos internos. Concebidas como um sistema de direção, monitoramento e incentivos, as boas práticas de governança corporativa contribuem para administrar e equilibrar os mais diversos relacionamentos, interesses, ônus e bônus de quem circunda uma empresa de controle familiar.

Fundadores e herdeiros – que mais cedo ou mais tarde enfrentarão os dilemas típicos de uma sucessão –, executivos e consultores de empresas familiares têm investido em conhecimento e adoção de melhores práticas, reconhecendo a função estratégica da governança para a criação de valor econômico e a longevidade das organizações e, consequentemente, das futuras gerações das famílias.

Há questões, porém, que ultrapassam a governança corporativa, em sua acepção mais pura, e pertencem essencialmente ao círculo da família controladora da organização, como comportamentos, relações interpessoais e sua evolução (ampliação ou redução naturais). Embora relacionados à esfera privada e mais íntima de cada grupo, tais aspectos têm efeitos concretos sobre os negócios. Para que esses aspectos sejam enfrentados de modo consciente, o IBGC publicou, em novembro de 2016, o caderno Governança da Família Empresária, com o objetivo de mostrar como a governança familiar pode contribuir para solucionar desafios vividos por empresas com essa configuração societária.

Ao definir governança familiar, a publicação tem o cuidado de deixar claro que ela não é governança corporativa. Enquanto esta é praticada no âmbito da organização, tendo a pessoa jurídica como protagonista, aquela acontece no ambiente da família, envolvendo as relações dos familiares entre si, com a propriedade, a empresa e as partes interessadas. Podemos entender que a governança familiar é exercida por meio de “um conjunto integrado de princípios orientadores, fóruns, normas e serviços destinados a alinhar os membros da família, fomentar mais sintonia e mais atuações pautadas numa visão de longo prazo e na perpetuação do legado de valores e do patrimônio econômico-social.”

Na prática, a governança familiar se dá por meios de estruturas e processos formais, destinados a orientar as relações e atividades empresariais da família, com base em sua identidade (valores familiares, propósito, princípios e missão) regras, acordos e definição de papéis. Apesar de variarem de acordo com o contexto de cada família e respectiva empresa, as seguintes estruturas de governança familiar apresentadas no caderno, em resumo, são:

  1. reunião ou assembleia familiar: fórum amplo de caráter informativo, orientativo e/ou deliberativo, em que são discutidos o alinhamento e o posicionamento familiares, do qual participam todos os membros, segundo regras previamente acordadas relativas a faixa etária e participação de cônjuges e outras pessoas próximas, por exemplo;

  2. conselho de família: formado por um grupo de familiares eleito pela assembleia familiar para representá-la, sendo responsável por intermediar seu relacionamento com os outros órgãos de governança (comitê de sócios e conselho de administração), propor e monitorar as atividades da família, elaborar e atualizar a “constituição” da família, entre outras atribuições;

  3. family office: estrutura que apoia a governança da família e presta serviços aos familiares, podendo abranger desde gestão patrimonial e de filantropia a agendamento de viagens, supervisão de afazeres domésticos e compras diversas;

  4. comitê de sócios: órgão que está no entrelaçamento da governança familiar e a atuação dos sócios, sem papel deliberativo, no qual o grupo controlador discute, por meio de seus representantes, no âmbito da sociedade empresarial, temas que dizem respeito exclusivamente aos sócios e formula recomendações para a assembleia da holding ou empresa principal;

  5. coordenação entres as governanças familiar e a corporativa: coordenação entre a família e a empresa por meio de órgãos de governança (conselho de família, comitê de sócios e conselho de administração, uma vez definidos os papéis e atribuições de cada um) e sistemas estruturados de comunicação, protocolos de relacionamento, relatórios informativos e/ou eventual interação entre membros das diversas instâncias.

Os eventos de divulgação do caderno Governança da Família Empresária em diferentes cidades do Brasil (Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza) permitiram perceber que há um longo caminho a ser percorrido na disseminação do conceito e práticas de governança familiar, independentemente das características econômicas, sociais e culturais de cada região. Em algumas dessas praças, ficou nítido o interesse do público presente em discutir práticas de governança corporativa, talvez por desconhecimento sobre governança familiar, talvez por desinteresse por essa abordagem. Cabe lembrar que os dois tipos de governança são elementos distintos, mas igualmente importantes e complementares: apoiam-se um no outro para que tenham efetividade.

É curioso perceber, no entanto, que algumas questões se repetem e se relacionam à governança da família, ainda que quem as faça não tenha muita consciência disso. Como superar o medo da perda de poder e a relutância do fundador em adotar boas práticas em benefício de toda a empresa, dos familiares e das próximas gerações? Como preparar e motivar jovens a ingressar e assumir responsabilidades sobre os negócios e o legado? Como evitar que comportamentos individuais comprometam a reputação de um sobrenome e de uma organização? A governança familiar promove sensibilização e conscientização para esses temas de cunho emocional, mas que têm efeitos diretos na continuidade das empresas.

Como já disse John Davis, acadêmico de Harvard e um dos autores mais renomados do mundo na área de empresas familiares, lidar com a família de maneira mais formal e estruturada pode parecer estranho à primeira vista, mas um pouco de planejamento e organização é fundamental para discutir assuntos sensíveis, que podem aflorar os mais diversos e complexos sentimentos.


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